segunda-feira, 7 de maio de 2012

Meio dia



- Tem fogo?
- Todo o fogo que você precisar, gostosa.
- É sério, porra.
- Sei lá, procura aí na gaveta, que saco.
Clara chutou o cobertor para o lado e levantou-se, nua em pêlo, para depois olhar petulante para a janela que jazia aberta, deixando entrar o sol do meio dia. Que se foda. Atravessou o quarto com naturalidade, como se desafiasse algum vizinho a flagrá-la em seu despudor, aqueles classe-média nojentos, conformados.
De repente sentiu um calor que simplesmente não combinava com junho, mesmo naquela terra amaldiçoada por Deus. O quarto, já pequeno, pareceu tornar-se menor e Clara viu-se desconfortável como se estivesse presa em meio aquelas quatro paredes já amareladas pelo tempo e pela fumaça de milhares de cigarros. As sombras pretas de mofo e infiltração dançavam felizes sobre a tinta gasta como se zombassem dela, como se a desafiassem a repudiá-las. Até os fungos caçoavam dela, até as bactérias estavam dançando e dizendo que ela não pertencia ao cenário. Estava realmente muito quente ali.
Caminhou com seus pés descalços até a cômoda pouco preocupada em desviar dos cacos do que até ontem a noite fora um espelho e que hoje se espalhavam pelo chão, pontiagudos e felizes com sua nova condição de possíveis armas letais. Abriu a primeira gaveta com um solavanco. Preservativos, rascunhos de pseudo obras-primas, um vidro de aspirina pela metade, um maço de papel de seda. Nenhum isqueiro ou fósforo.
- Mas que favela você tem aqui, hein? - Gritou fechando a gaveta com um soco, fazendo tremer todo o móvel velho que os cupins haviam colonizado e transformado numa nação democrática. Para agredir, entende. Mas não obteve resposta, posto que Ernesto, aquele inútil, continuava deitado no colchão duro na mesma posição em que ela o deixou, nu, com a mão esquerda servindo de apoio para a cabeça e a mão direita segurando o pau - parecia um imbecil quando fazia isso. Os olhos verdes, maravilhosos por sinal, olhavam vidrados para uma rachadura longa no teto: Devia estar profundamente absorto na viagem que estava tendo. Drogadinho filho da puta metido a escritor, pensou Clara. Babaca.
- Você não se preocupa em estar desperdiçando alguma grande oportunidade que você nunca vai saber que teve porque estava deitado aí totalmente alucinado? Quer dizer, não se pergunta o que estaria fazendo quando não está enchendo o nariz de pó? Se você fizesse como as outras pessoas, sabe, acordasse, trabalhasse, interagisse, dormisse, essas coisas?
- Com certeza, gata. Com certeza.
- Você não tá nem escutando, seu grande filho da puta. Só fica aí deitado olhando pro teto, seu alienado do caralho.
- Com certeza.
Clara deu um chute na cômoda dos cupins da gaveta sem isqueiro. Ia embora daquele moquifo do Ernesto. Já fazia três dias, pelo amor de Deus, três dias só cheirando, bebendo, fodendo e dormindo. Pra mim chega entendeu? Chega. Não tinha nascido praquilo não. Havia sido criada na Zona Sul, entende? Colégios caríssimos. Não precisava daquilo não. Ia sair dali, ir tomar um banho, comprar um lenço. Boa ideia. Ia destrancar a matrícula da faculdade inclusive. E ia arrumar um estudante de medicina que usasse relógio de prata. Dessa vez o Ernesto ia ver.
Começou a catar suas roupas, espalhadas pelo chão. Com certo esforço encontrou uma bota num canto, um sutiã pendurado no abajur. Se a calcinha não aparecesse tudo bem, aliás nem da outra bota precisava pra ir embora. Mas sem a blusa ficava difícil... Ou não?
Antes que Clara conseguisse responder essa pergunta, Ernesto deu um suspiro. Seus olhos vidrados maravilhosamente verdes já não se dirigiam mais para o teto, e sim para ela. Não para o seu corpo, mas para seu rosto. Para os cabelos que pendiam sobre o ombro esquerdo. Para a pinta bem no meio das suas costas.
Clara sentiu-se enrubescer, como todas as vezes, sem exceção, desde a primeira, lembra daquele dia? Jogou a bota e o sutiã no canto e deitou-se novamente no colchão duro. Aninhando-se no peito dele com a leveza de uma gueixa, de uma borboleta, uma pluma talvez, suspirou.
- Eu te amo, sabia? Seu filho da puta.
- Com certeza, gata. Com certeza.

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